domingo, 12 de abril de 2009

Rua da Fábrica

"O Grande Hotel de Paris ainda é a sala de visitas da artéria dos livreiros

O mítico café Estrela d'Ouro também está de volta à rua que os turistas e a "movida" da Baixa do Porto (re)descobriram. As livrarias continuam por aqui, mas as vendas diminuíram

Há duas ou três décadas, o regresso às aulas de qualquer aluno do Grande Porto implicava uma visita quase obrigatória às papelarias e editoras da Rua da Fábrica. Hoje, os livreiros da artéria - que forma com a Praça de Carlos Alberto e a Rua dos Mártires da Liberdade o triângulo de maior densidade do sector no Porto - garantem que o título de centro do livro no Norte ainda se mantém, embora as vendas já não sejam as mesmas, face à concorrência das grandes superfícies. Muitos clientes das independentes Livraria de José Alves, Sousa & Almeida e Editora Educação Nacional vêm especificamente à procura daquilo que não encontram nas lojas dos centros comerciais. A "gigante" Porto Editora também está presente e a rua até tem significado histórico para o grupo editorial. A sua primeira livraria/papelaria foi inaugurada aqui, em 1944. A loja actual data de 1966 e tem um cariz generalista. Bem mais antigo é o Grande Hotel de Paris, inaugurado em 1888, e que pode ser considerado a sala de visitas da rua, com um passado de hóspedes notáveis, de Camilo Castelo Branco a Eça de Queirós.
Antes de prosseguirmos, debrucemo-nos um pouco sobre a toponímia do arruamento, que se deve à Real Fábrica do Tabaco, cuja prosperidade chegou a ser considerável no século XVIII. No século XXI, os noctívagos da vizinha zona das Carmelitas não descem até aqui à procura de cigarros, mas sim das cervejas e das sandes de presunto da típica mercearia Casa S. Jorge, aberta pela noite fora. O Royal Kebab, mais abaixo, é alternativa.
Voltemos às livrarias, para perceber os diferentes conceitos. A Livraria de José Alves, na esquina com a Rua de Aviz, sucedeu à antiga ASA e especializou-se em livros técnicos, de engenharia, economia ou informática. A Sousa & Almeida vem de 1952 e continua a ser gerida por um dos fundadores, Joaquim de Almeida. As áreas fortes são História, Arqueologia, Arte Portuguesa e Etnografia, bem como os livros antigos seleccionados. Também há uma secção de livros galegos e de temas africanos. Na Editora Educação Nacional, que chegou a ser uma das mais relevantes do país em termos de ensino básico, a oferta concentra-se nos guias turísticos, livros escolares do primeiro ciclo e literatura infanto--juvenil. Todos os estabelecimentos se queixam do mesmo: da falta de estacionamento e das obras prolongadas de requalificação, realizadas no âmbito da Porto 2001 Capital Europeia da Cultura. "A rua ficou bonita, mas foi a machadada final, nunca mais houve retoma", sublinha José Alves.
Ao Grande Hotel de Paris ninguém tira o título de estabelecimento com mais história da rua. Foi fundado em 1888, mas o antecessor Hotel Francês tem referências muito anteriores.

O hotel de Camilo

Entre outras curiosidades, diz-se que o Grande Hotel foi o primeiro no Porto a ter água quente nos quartos. Em 1849, albergou o escritor Camilo Castelo Branco. Em 1999, a unidade passou para a actual gerência, de David Ferreira, que procedeu a obras de recuperação, mantendo a traça e os objectos antigos. Os 42 quartos costumam estar ocupados por turistas "europeus, jovens e que não querem um hotel standard", revela David Ferreira. No salão de refeições, só se servem agora os pequenos-almoços, de base tradicional portuguesa.
Há aqui outro estabelecimento mítico: o Estrela d'Ouro, que faz parte da linhagem de cafés que moldaram, durante muitos anos, a vida académica e social do Porto. "Quando reabrimos, muita gente entrava cá para nos dizer que tinha começado aqui o namoro, estudado por cá", contou-nos Fernando Martins, o actual proprietário. Pedro Homem de Mello, Eugénio de Andrade e Óscar Lopes são algumas das figuras do mundo literário associadas à tertúlia que aí se reunia.
A decadência dos últimos anos foi interrompida em 2007, com obras profundas, que alteraram por completo a decoração, sem quaisquer traços do passado. Agora, a cafetaria tem pouco peso, sendo o piso térreo essencialmente dedicado a almoços (com pratos do dia) e jantares. A ementa concentra-se nas pizzas (há rodízio por 12,90 euros) e no serviço de grill. No primeiro andar, estão seis bilhares, enquadrados num espaço de bar, aberto pela noite dentro (a cozinha funciona até às 2h00). Nas quartas-feiras académicas, o fino é a um euro.
No outro lado da rua, o restaurante Companhia dos Morfes assentou arraiais no número 34, depois de mais de uma década na Foz do Douro. A cozinha também fecha apenas às 2h00, aos fins-de--semana, sendo que os lombinhos de porco preto são o ex-líbris deste local requintado. O menu em inglês denuncia o óbvio: os turistas andam por aqui e são um dos alvos."

Artigo de João Pedro Barros, in Público

Sem comentários: