domingo, 1 de fevereiro de 2009

"Reaproveitar a história para dar identidade a novos negócios

A antiga Casa Margaridense é agora um espaço de lazer multiusos. Na Baixa, há vários antigos espaços de comércio e indústria com nova vida

Quando era criança, Sara Pinto era uma das muitas clientes da Casa Margaridense. Agora, aos 35 anos, lança-se na aventura de retomar parte do espírito que fez do espaço da Travessa da Cedofeita, no Porto, uma referência histórica no fabrico e venda de pão-de-ló e outras iguarias. O número 21 da travessa acolhe agora a Casa de Ló (a abertura oficial é na próxima quarta-feira), que recupera a antiga loja e junta-lhe uma cafetaria, salão de chá e um bar, para satisfação dos muitos curiosos que, durante as obras, espreitavam pelas janelas.
É o último caso de uma tendência recente e que promete continuar: a transformação de espaços com tradição na vida económica do Porto - fábricas, armazéns, livrarias - em sítios de lazer, com forte actividade nocturna. A precariedade laboral e a vontade de criar projectos pessoais são alguns dos motores do surgimento destes projectos. Foi assim também na Casa de Ló, cujas responsáveis quiseram "mudar de vida".
A tabuleta "Aluga-se" na porta da Margaridense, fundada em 1880 e encerrada em 2007, tornou mais fácil a decisão de Sara Pinto, que dá formação profissional, e da amiga e sócia Adriana Rocha. Procuravam um espaço para começar um negócio pessoal. "A nossa ideia teve que se adequar ao espaço. Esta loja tem uma vida própria", conta Adriana Rocha, de 46 anos, professora na Escola Artística Soares dos Reis, no Porto.
Sara e Adriana aplicaram as suas poupanças na recuperação do espaço. Mantiveram a loja quase intacta: estão lá os balcões, as prateleiras com os produtos tradicionais que popularizaram a casa (pão-de-ló, marmelada, geleia de marmelo, cavacas, suspiros, entre outros), o cofre onde se guardavam as medidas secretas de cada ingrediente. O pão-de-ló que popularizou a casa já não será produzido ali (nem nenhum dos produtos, aliás), mas virá de uma fábrica de Margaride, freguesia de Felgueiras de onde eram originários os primeiros proprietários da Margaridense.À tradição, Sara e Adriana juntaram novidades: chocolate, vinho, cadernos, livros e produtos de autor, uma esplanada nas traseiras (pedras do antigo forno são agora bancos), e, na zona onde antes laboravam os fornos a carqueja, noites com concertos e DJ, exposições, refeições ligeiras durante o dia e, possivelmente, projecções de filmes. Esta mistura entre o tradicional e o contemporâneo tem como objectivo "chegar a todas a idades" e tipos de pessoas, diz Sara Pinto. O horário da Casa de Ló, das 10h00 às 2h00, condiz com a estratégia.

O "regresso" dos armazéns

A tendência de transformar espaços antigos da Baixa em locais de lazer está intimamente ligada à dinâmica que esta zona tem apresentado nos últimos anos, sobretudo à noite. Depois da abertura de bares pioneiros, como o Passos Manuel, o Maus Hábitos e o Café Lusitano, um conjunto de novos empresários apostou na Baixa para instalar os seus negócios. Boa parte dos espaços mantém a traça arquitectónica e parte da imagem antiga dos espaços, construindo a sua identidade a partir desse passado. Segundo disseram vários empresários do sector ao PÚBLICO, há já projectos para novos estabelecimentos com características semelhantes.
As ruas da Galeria de Paris e Cândido dos Reis, outrora conhecidas pelos seus amplos armazéns de tecidos, são o centro da nova vida boémia da cidade. O restaurante e bar Galeria de Paris e o Plano B, situados nessas ruas, aproveitaram antigos armazéns. Não muito longe dali, na Rua de José Falcão, dois café-bares - o Café Lusitano e o Armazém do Chá - ocupam, respectivamente, os espaços que pertenceram a um armazém de moagens do início do século passado e um outro de torrefacção de chá.
Trata-se de "usar o passado para construir o futuro", diz Filipe Teixeira, um dos responsáveis pelo bar Plano B, aberto em Dezembro de 2006. Procuravam um espaço nas redondezas da Torre dos Clérigos e encontraram um edifício de 1909, "versátil", com "carácter" e com o bónus de ter sido desenhado pelo importante arquitecto portuense José Marques da Silva (responsável, por exemplo, pelo desenho da Estação de S. Bento e o Teatro Nacional São João), por encomenda do conde de Vizela. "Estava em mau estado, com o soalho e as escadas podres", recorda. Ninguém diria, mas "era muito fácil voltar a parecer um armazém".
José Pedro Maia e Pedro Trindade, da Casa do Livro, na Rua da Galeria de Paris, descobriram o espaço ideal para o bar que abriram em Junho de 2007. Já idealizavam um sítio com uma presença forte dos livros; o que não sabiam era que ali tinha funcionado uma livraria. "Chamava-se precisamente Casa do Livro. Mal se lia o nome na fachada", recorda José Pedro Maia. Acabaram por adoptar o nome e a escolha faz todo o sentido: nas paredes, há centenas de livros, em sintonia com o ambiente intimista do bar, que abre ao final da tarde.
Manter um espaço com estas características "dá muito trabalho, mas faz-se tudo com prazer", diz David Castro, gerente do Lusitano, um recatado café com serviço de catering durante o dia e um bar à noite, que se assume como gay-friendly. Quando abriu, há quatro anos, o antigo armazém, que estava desactivado há dez anos, "foi inteiramente recuperado", com algumas adaptações à nova função.
Do outro lado da rua, no Armazém do Chá, aberto em Abril de 2008, ainda se encontra cerca de uma tonelada e meia de folhas de chá, distribuída por sacos de serapilheira, sinal de um passado não muito longínquo com funções muito distantes das actuais. O espaço, com 700 metros quadrados, não foi a primeira opção de Rui Silva e Sérgio Ribeiro (queriam montar um bar que apostasse no vinho a copo e com uma agenda de concertos muito preenchida), mas a sua história acabou por modificar um pouco a ementa do espaço, que conta com diversos chás. "Vendemos muito chá à noite. Até eu fico surpreendido", diz Rui Silva. Para José Pedro Maia, da Casa do Livro, estas opções revelam "inteligência" por parte dos empresários: "Há espaços lindíssimos. É uma tendência natural pela Europa fora. Só não era no Porto."
Segundo o arquitecto Nuno Grande, as obras de requalificação transformaram as ruas em espaços mais atractivos."
Artigo de Pedro Rios, in Público

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