domingo, 15 de fevereiro de 2009

Rua das Flores

"Ourives, alfarrabistas e berbequins na mais tripeira das ruas do Porto

Na Rua das Flores, outrora famosa pelas ourivesarias e lojas de têxteis, é a reabilitação urbana promovida pela Porto Vivo que hoje chama a atenção. Uma rua à procura de residentes.

A Não conseguimos descobrir como nasceu o epíteto, mas é um facto que chamam à Rua das Flores "a mais tripeira das ruas do Porto". É provável que esta alcunha tenha sido inspirada pelos notáveis edifícios dos séculos XVI e seguintes que a dominam e que dão um forte argumento aos defensores de uma artéria pedonal. Isto porque quem a percorre com olhos de ver tem de se deter no meio da faixa de rodagem para apreciar as varandas, os trabalhos em ferro forjado ou os vários exemplos de arte antiga que clamam por atenção. Mas, por estes dias, um passeio sossegado pode ser perturbado pelo barulho dos berbequins ou dos martelos, vindo dos edifícios que estão a ser intervencionados no âmbito dos projectos da sociedade de reabilitação urbana Porto Vivo. Foi nesta artéria, em 2006, que a entidade completou a sua primeira promoção própria, no edifício onde funcionava a Papelaria Reis e onde hoje está a Cidade das Profissões, que se dedica à informação e aconselhamento profissional. Seis T2 foram comercializados através de concurso, com grande procura. A esperança de que a Rua das Flores retome a sua raiz residencial passa por aqui.
Carlos Oliveira, de 78 anos, é um dos moradores que resistem: habita o mesmo prédio dos joalheiros Eduardo Carneiro, onde trabalha desde 1946. "Antigamente as casas estavam todos habitadas e geralmente os donos dos estabelecimentos moravam por cima", relembra. O portuense ainda viveu o período áureo daquela que foi considerada, desde meados do século XVII, como a "Rua dos Ourives" ou "Rua do Ouro" do Porto. Os estabelecimentos do género chegaram a ser mais de 20, mas, em 2009, o PÚBLICO contou apenas sete, que ainda assim oferecem um considerável leque de escolhas. Mas Carlos Oliveira ainda tem outras histórias: lembra-se dos carros de bois que subiam desde a Ribeira até à Praça de Almeida Garrett e das famílias que no final das tardes de domingo percorriam a rua com um sável na mão, vindo directamente do rio. A alfândega era o ponto de onde partia todo o comércio da cidade e a sua progressiva desactivação teve muita influência na perda de movimento da rua.
Mandada abrir pelo rei D. Manuel I, em 1518, e calcetada em 1542, a Rua das Flores (cujo perfil original está quase intacto) tornou-se desde logo numa das principais vias da cidade, razão pela qual muitos nobres e burgueses construíram aqui os seus palacetes. Podemos destacar alguns: a Casa dos Maias ou dos Ferrazes Bravos (números 31 a 39, onde deve surgir um hotel de charme, em 2010), a dos Cunhas Pimentéis (na esquina com o Largo de São Domingos) ou a Casa da Companhia (número 69). A Igreja da Misericórdia, actualmente encerrada para obras (poderá reabrir no Verão), é outro ponto de interesse: a sua fachada, em estilo barroco, é da autoria de Nicolau Nasoni, datando de meados do século XVIII. No edifício da Misericórdia do Porto pode visitar--se um pequeno núcleo museológico (por 1,5 euros), onde se destaca a pintura Fons Vitae, uma alegoria à fundação das misericórdias, de princípios do século XVI, em que figuram os membros da família real, no tempo de D. Manuel I. O cartaz cultural poderá ficar enriquecido com o Museu do Teatro de Marionetas do Porto, que vai funcionar no número 22 e onde devem ser exibidas 1200 peças. No final de Fevereiro ficam completas as obras do segundo piso, que vai ser aberto a visitas de estudo, mas falta financiamento para o resto da obra.

Alfarrabistas com história

Os alfarrabistas da Rua das Flores, Chaminé da Mota e João Soares, também são um bom motivo para uma visita. No primeiro, respira-se um ambiente solene (o facto de a Antena 2 ser a "rádio oficial" ajuda) e há uma série de antiguidades expostas, que incluem duas caixas de disco, de fabrico alemão, de finais do século XIX. Uma delas toca a Marselhesa, a outra A Internacional. O alfarrabista João Soares é mais descontraído: por exemplo, diz que a sua livraria (onde há muitas pechinchas) está organizada segundo uma "desordem ordenada". Era bancário, mas foi juntando tantos livros que percebeu que os podia vender num espaço próprio. Hoje está reformado e diz que não se importa de facturar "20 ou 30 euros por dia": "Os custos são baixos e estou aqui com boa música, no meio dos livros".Outro destaque da rua é a mercearia fina A Pérola da Índia, no número 220. Foi fundada em 1934, mas mudou bastante nos últimos anos, de forma a cativar o comprador de passagem e o turista que desce até à marginal do Douro. Agora, a aposta centra--se na garrafeira e em produtos como bacalhau, presunto ou alheiras, com qualidade e a preços competitivos. A Memórias, dedicada ao artesanato português e decoração, é um belo recanto cheio de bordados, cerâmica e azulejos vindos de todo o país. Para algo completamente diferente, também se pode encontrar roupa gótica e alternativa na Oblivion. De resto, há aqui várias lojas de vestuário e armazéns de tecidos, reminiscências do tempo em que a artéria era também o centro dos têxteis na cidade."

Artigo de João Pedro Barros, in Público

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